quinta-feira, 27 de outubro de 2011

POEMA DO INVERNO

adormece ou morre
neste outono-inverno
o fantasma da infância
e a doce lembrança dos que amei

desfeita em farrapos
a bandeira do mundo novo
é como uma fogueira em cinzas
(ainda assim trémula de esperança)

poema eram teus doces lábios
no parque eduardo VII
e teus seios em oferta
numa pensão manhosa do Intendente
(e o Gianni Morandi era o Sartre dos pobres)

e depois Alcântara
o cais e os lenços brancos
e amor
nunca mais seremos inocentes

porque nas mãos
trago sangue de irmãos
e aerogramas de lágrimas

inverno é o que sinto
para além da chuva
porque as vozes que me habitam
ouvi-as numa emboscada em Angola:
mãe quero morrer...

Manuel Monteiro

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

POR ESTE CAMINHO VAI TANTA GENTE- ROMANCE

"Mesmo quando andamos distraídos ou tristes podem surgir nas nossas vida seres e acontecimentos que exigem de nós um olhar atento. Às vezes basta reparar numa mesa de café. Foi o que aconteceu naquele dia em que o Madragoa viu um velho sentado no cantinho do bar. Contaram-lhe que se sentava sempre na mesma mesa e que, se esta estava ocupada, afastava-se a resmungar. Bebia o que tinha a beber, tirava dos fundos bolsos do velho sobretudo papéis amarrotados que lia, mexendo ligeiramente os lábios.
Disseram-lhe mais tarde que foi um homem importante, até chegou a ser deputado, de direita, monárquico.
Tirando os resmungos nos dias em que a mesa favorita estava ocupada, entrava mudo e saía calado, embora com um sorriso meio trocista que lhe dava um aspecto de avôzinho protector.
Um dia Madragoa entrou no bar que se encontrava completamente cheio. Pediu-lhe licença para se sentar à sua mesa. Acenou que sim, com a cabeça. Madragoa andava a ler a biografia de Ché Guevara, e pos o livro no tampo da mesa, enquanto bebia o café. O velho olhou para a capa e fixou o seu vizinho de mesa. Entreabriu os lábios e disse num murmúrio:
-Homem coerente, esse tipo. Sabe, os revolucionários arrependidos são como as putas em fim de carreira. Procuram a todo o transe a respeitabilidade e têm uma coisa em comum: ambos se envergonham do passado.
Madragoa queria acreditar que o homem não o conhecia de lado nenhum, mas aquilo soou-lhe a provocação. Não soube porquê, mas começou a sentir um certo mal-estar. Deu as boas tardes e saiu.
Onde é que o raio do velho o atingiu? Estava a atacá-lo, a elogiá-lo, ou a preveni-lo?
Esteve uns meses sem passar pelo bar. Quando lá retornou perguntou pelo velho.
-Cheirava tão mal que o patrão, devido à reclamação de alguns clientes, proibiu a sua entrada – respondeu o empregado.
Ficou triste. Porque é que homens grandiosos às vezes têm um final destes?
Sentou-se na mesa onde se sentava o velho sábio e abriu o jornal, mas a vontade de ler era pouca. Foi passando os olhos pelo matutino, até que uma pequena notícia o despertou da letargia. “Na Austrália, um surfista de 28 anos foi atacado e morto por um tubarão gigante. As autoridades australianas encetaram uma perseguição ao grande predador, para o abater. O irmão mais velho do surfista morto pelo tubarão pediu às autoridades que não o abatam, no caso de o encontrarem”.
Triunfará a visão compassiva do familiar do defunto ou a sanha justiceira das autoridades marítimas? Madragoa, se fosse o tubarão, não confiava em ninguém e punha-se bem ao largo até que o crime seja esquecido. É que vivemos em sociedades cuja compaixão pelos velhos é nula, quanto mais por tubarões...
Saiu do bar e deu uma volta pela zona dos Anjos. Sentou-me num banco do jardim, em frente à igreja. Os sem-abrigo e os pobres abrigados esperavam pelo almoço, servido gratuitamente no refeitório defronte ao templo. Estava pensando como esta sociedade é injusta, quando um velhote se sentou a seu lado. Pediu-lhe um cigarro.
-Não fumo.
Mas, condoído, deu-lhe cinco euros.
-Compre um maço. Por que chegou a isto? - perguntou, com entoação moralista.
-Seja para que lado que um pobre se vire, ficará sempre do lado onde o sol não brilha – respondeu o mendigo. – Sim, porque essa treta de que o sol quando nasce é para todos não passa de cantiga para embalar tontos...
Afinal, aquele homem não era um sem-abrigo; era um profeta.
Depois veio uma mulher, também de idade avançada. Lamentou-se que não conseguira tirar a senha da refeição, e que assim ia ficar todo o dia sem comer.
Madragoa tirou mais cinco euros do bolso e passou-os para as mãos da chorosa mulher. Olhou para ele com imensa gratidão.
-Se passar por aqui à noitinha dou-lhe uns beijinhos molhados, ali ao fundo do jardim.
Ao notar que Madragoa não compreendia a oferta, explicou-se com toda a crueza:
-Faço-lhe um broche, como paga pela sua generosidade...
Nestas duas vidas, irmãs na desgraça, mora o que de bom e de degradante se alberga no coração humano. Um, apesar de toda a humilhação, tem a consciência lúcida da condição marginal e das suas causas. Outro entrega o frágil corpo em troca de uns míseros euros. No entanto, tanto um como a outra merecem a mesma justiça: o resgate da sua dignidade."

Excerto do meu próximo romance POR ESTE CAMINHO VAI TANTA GENTE

Manuel Monteiro

sábado, 10 de setembro de 2011

QUEM SOU EU PARA DESMENTIR O MESTRE?

"Mas a questão é: o nosso desemprego não será solucionado enquanto os senhores não ficarem desempregados"

Bertolt Brecht

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

POR ESTE CAMINHO VAI TANTA GENTE-ROMANCE

"O pai Manuel foi apontado a dedo pelos moradores como o causador da morte de quase todos os gatos e cães do bairro. Alguns atenuaram a acusação devido ao facto de se terem visto livres das perigosas ratazanas. E depois cães e gatos é espécie que se reproduz com facilidade e, passados poucos meses, já o repovoamento estava feito. O que os moradores não perdoaram ao pai Manuel foi a chacina das galinhas. Os coelhos escaparam porque são animais de cativeiro, e aqui se prova que a liberdade nem sempre é um bem. Os ditadores seguem esta lógica e reproduzem nos países o que os humanos praticam nas coelheiras."

Excertos do meu próximo romance POR ESTE CAMINHO VAI TANTA GENTE

Manuel Monteiro

domingo, 4 de setembro de 2011

POE ESTE CAMINHO VAI TANTA GENTE

"...os revolucionários arrependidos são como as putas em fim de carreira. Procuram a todo o transe a respeitabilidade e têm uma coisa em comum: ambos se envergonham do passado."

Excerto do meu próximo romance POR ESTE CAMINHO VAI TANTA GENTE

Manuel Monteiro

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

A QUEM AMEI


Ah minha terra da infância
Meu rio de águas claras
Minha torre de mouras encantadas

Ah teu corpo tímido
Dando-se ao meu
Como orvalho à madrugada

Meus amigos do pião
Que são agora rostos
Que minhas mãos desconhecem

Minha pequena aldeia de silvedos
E encantamentos
Meu berço e meu caixão

Ah meu amor primeiro
Perdido para sempre
Que esconde seus olhos velhos
Quando passa o ancião que sou

Oh terra oh gente
Deixai-me chorar pelo menino que fui
E pelo moribundo que sou
Deixai-me sentir o vento
O murmurar do rio
E sentar-me à sombra da torre
Que embalou meus passos

Oh minha terra da infância
É um velho que te fala
Que te abraça
Que te oferece seus filhos e netos

Que te abraça oh terra
Com os olhos no passado

Com saudades do futuro





Manuel Monteiro

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

CORTES NA DESPESA? LIQUIDEM-SE OS POBRES!

A tua nota foi criada.
Eles anunciam em grandes parangonas que vão fazer cortes na despeza como nunca se verificou desde 1950.
"Vai ser uma redução na despesa histórica", proclama o ministro da economia com o ar feliz de um tolinho que brinca com uma granada.
Afinal, o corte na despesa não é nas mordomias dos ricos nem nos privilégios dos altos quadros do estado.
O corte na despesa será na saúde para os pobres, no ensino público, no aumento dos transportes, na subida da electricidade e do gaz, no roubo do 13º mês, no próximo aumento do IVA, na introdução das portagens nas estradas do interior mais pobre.
Todas as medidas de austeridade recairão sobre os que já pouco tinham, enquanto as grandes fortunas continuarão a aumentar...
Então, meu povo, cá nos encontraremos: ou na rebelião mais radical contra estes vampiros da nossa felicidade
Ou, baixando os braços, numa sopa dos pobres de uma instituição de caridade de uma cidade qualquer...

Manuel Monteiro