segunda-feira, 19 de julho de 2010

OS PEQUENOS GESTOS QUE NOS SALVAM

Na minha banca de alfarrabista, na Feira da Ladra, tenho em exposição o meu livro de poesia IMPERFEITA SABEDORIA, com um pequeno letreiro, que diz: O AUTOR DESTE LIVRO É O PROPRIETÁRIO DA BANCA.E como na capa está a minha foto, abraçado ao meu neto Gabriel, as pessoas olham para a foto e depois para mim, para ver se se confirma o que está escrito no letreiro.
Duas velhotas aproximam-se e remiram o livro e remiram-me. Diz uma para a outra, baixinho, tentando que eu não perceba:
-Este escreve poesia, coitado...
A outra responde:
-Mas é bonito o verso que está na capa.
E lê para que a amiga oiça:

Avô
Porque faz o melro
o ninho
Ao alcance da minha mão?

Meu neto
É para despertar
A tua compaixão...

A outra pergunta:
-Vamos levar?...
E estende-me os cinco euros.
Eu recebo em festa a contribuição e penso que a poesia não é, sobretudo, o que se escreve, mas estes gestos que nos libertam.

Manuel Monteiro

terça-feira, 13 de julho de 2010

A SOLIDÃO REPARTIDA

Quando passo em Belém, lá está ele, no passeio, impecavelmente vestido, acenando às pessoas que, apressadas, passam nos seus veículos. Quando passa um autocarro quase que se desfaz em gestos e beijos, tal a sua ânsia de abarcar toda a gente que vão para longe. Mas já o vi no Cais do Sodré, no Marquês de Pombal,nos Restauradores, e em outros locais da cidade. Aparece ao fim da tardinha e por lá fica até tarde da noite.
Num dia destes, em Belém, lá estava ele, mas, desta vez, estava acompanhado por um jovem casal que se fotografavam com ele. Eu parei o meu carro junto a eles e saí, simulando que verificava os pneus do veículo. Os seus olhos brilhavam, expulsando a solidão que o habita.
Há anos que vejo o homem da solidão repartida pelas ruas de Lisboa, repartindo connosco a sua existência e o seu afecto. No dia em que não o encontrar acenando à nossa indiferença, também ficarei mais solitário porque quem a repartia comigo já cá não estará para me fazer sorrir de ternura; ainda que por breves momentos.

Manuel Monteiro

segunda-feira, 5 de julho de 2010

SOCIALISMO OU BOÉMIA?

Na TV vi agora um documentário sobre Cuba. Quando vejo algo sobre Cuba um sentimento contraditório me assalta: ali nasceu algo de novo, mas...Já morreu totalmente esse embrião de uma nova sociedade? Agarro-me eu a essa única esperança sem reparar que essa sociedade socialista, fraterna e igualitária não passa de um cadáver adiado? E vocês o que pensam?
Nesse documentário televisivo é entrevistado um desempregado que se dedica à boémia. O seu sonho é abrir uma oficina com empregados. Mas diz que só o podia fazer com familiares, porque se metesse não-familiares o estado não o permitia porque seria considerado uma empresa e isso de empresas privadas de cubanos o governo não está para aí virado.
O entrevistador perguntou-lhe:
-Mas se abri-se essa oficina não podia andar na boémia porque teria que abrir todos os dias a porta e orientar os operários.
Resposta do boémio:
-Bom, chefe é chefe. Quando fosse para a boémia dava as chaves a um operário e eu ficava a descansar.
Este boémio desempregado não é parvo. Tem em todos os poros daquele corpo os genes do capitalismo parasita; os patrões no folguedo e os operário a vergar a mola.

Manuel Monteiro