segunda-feira, 19 de setembro de 2011

POR ESTE CAMINHO VAI TANTA GENTE- ROMANCE

"Mesmo quando andamos distraídos ou tristes podem surgir nas nossas vida seres e acontecimentos que exigem de nós um olhar atento. Às vezes basta reparar numa mesa de café. Foi o que aconteceu naquele dia em que o Madragoa viu um velho sentado no cantinho do bar. Contaram-lhe que se sentava sempre na mesma mesa e que, se esta estava ocupada, afastava-se a resmungar. Bebia o que tinha a beber, tirava dos fundos bolsos do velho sobretudo papéis amarrotados que lia, mexendo ligeiramente os lábios.
Disseram-lhe mais tarde que foi um homem importante, até chegou a ser deputado, de direita, monárquico.
Tirando os resmungos nos dias em que a mesa favorita estava ocupada, entrava mudo e saía calado, embora com um sorriso meio trocista que lhe dava um aspecto de avôzinho protector.
Um dia Madragoa entrou no bar que se encontrava completamente cheio. Pediu-lhe licença para se sentar à sua mesa. Acenou que sim, com a cabeça. Madragoa andava a ler a biografia de Ché Guevara, e pos o livro no tampo da mesa, enquanto bebia o café. O velho olhou para a capa e fixou o seu vizinho de mesa. Entreabriu os lábios e disse num murmúrio:
-Homem coerente, esse tipo. Sabe, os revolucionários arrependidos são como as putas em fim de carreira. Procuram a todo o transe a respeitabilidade e têm uma coisa em comum: ambos se envergonham do passado.
Madragoa queria acreditar que o homem não o conhecia de lado nenhum, mas aquilo soou-lhe a provocação. Não soube porquê, mas começou a sentir um certo mal-estar. Deu as boas tardes e saiu.
Onde é que o raio do velho o atingiu? Estava a atacá-lo, a elogiá-lo, ou a preveni-lo?
Esteve uns meses sem passar pelo bar. Quando lá retornou perguntou pelo velho.
-Cheirava tão mal que o patrão, devido à reclamação de alguns clientes, proibiu a sua entrada – respondeu o empregado.
Ficou triste. Porque é que homens grandiosos às vezes têm um final destes?
Sentou-se na mesa onde se sentava o velho sábio e abriu o jornal, mas a vontade de ler era pouca. Foi passando os olhos pelo matutino, até que uma pequena notícia o despertou da letargia. “Na Austrália, um surfista de 28 anos foi atacado e morto por um tubarão gigante. As autoridades australianas encetaram uma perseguição ao grande predador, para o abater. O irmão mais velho do surfista morto pelo tubarão pediu às autoridades que não o abatam, no caso de o encontrarem”.
Triunfará a visão compassiva do familiar do defunto ou a sanha justiceira das autoridades marítimas? Madragoa, se fosse o tubarão, não confiava em ninguém e punha-se bem ao largo até que o crime seja esquecido. É que vivemos em sociedades cuja compaixão pelos velhos é nula, quanto mais por tubarões...
Saiu do bar e deu uma volta pela zona dos Anjos. Sentou-me num banco do jardim, em frente à igreja. Os sem-abrigo e os pobres abrigados esperavam pelo almoço, servido gratuitamente no refeitório defronte ao templo. Estava pensando como esta sociedade é injusta, quando um velhote se sentou a seu lado. Pediu-lhe um cigarro.
-Não fumo.
Mas, condoído, deu-lhe cinco euros.
-Compre um maço. Por que chegou a isto? - perguntou, com entoação moralista.
-Seja para que lado que um pobre se vire, ficará sempre do lado onde o sol não brilha – respondeu o mendigo. – Sim, porque essa treta de que o sol quando nasce é para todos não passa de cantiga para embalar tontos...
Afinal, aquele homem não era um sem-abrigo; era um profeta.
Depois veio uma mulher, também de idade avançada. Lamentou-se que não conseguira tirar a senha da refeição, e que assim ia ficar todo o dia sem comer.
Madragoa tirou mais cinco euros do bolso e passou-os para as mãos da chorosa mulher. Olhou para ele com imensa gratidão.
-Se passar por aqui à noitinha dou-lhe uns beijinhos molhados, ali ao fundo do jardim.
Ao notar que Madragoa não compreendia a oferta, explicou-se com toda a crueza:
-Faço-lhe um broche, como paga pela sua generosidade...
Nestas duas vidas, irmãs na desgraça, mora o que de bom e de degradante se alberga no coração humano. Um, apesar de toda a humilhação, tem a consciência lúcida da condição marginal e das suas causas. Outro entrega o frágil corpo em troca de uns míseros euros. No entanto, tanto um como a outra merecem a mesma justiça: o resgate da sua dignidade."

Excerto do meu próximo romance POR ESTE CAMINHO VAI TANTA GENTE

Manuel Monteiro

1 comentário:

Luís disse...

Grande Manuel Monteiro, aguardo o teu novo livro. Já vi que vai ser bom e na linha do gato Osborn...
Um abraço
Luís Neto