quarta-feira, 24 de novembro de 2010

POEMA SOBRE UMA RESOLUSÃO DO COMITÉ CENTRAL

mandaram-me escrever uma resolução do comité central
estava frio recolhi-me a um café
escrevi escrevi rasguei e tornei a escrever
não assim a revolução não vai lá
um casal de melros namorava na árvore do jardim
um barco atravessava o Tejo e os operários chegavam à porta da Lisnave
(era sobre eles que eu estava a escrever – de tão longe…)
fumei mais um cigarro mandei vir novo café
reescrevi a resolução do comité central apesar
do riso claro e das pernas longas da rapariga da mesa em frente
o meu soldo de membro do comité central era baixo mas mandei vir mais um brande
e recomecei a fazer emendas e mais emendas nada me saia bem talvez
porque estavam tão longe de mim os operários da Lisnave
chegou a hora de jantar e o empregado procurou empurrar-me da
mesa colocando uma toalha avermelhada à minha frente
mandei vir uma sopa para não perder o lugar e recomecei a escrever
a resolução do comité central
pedi um jarro de vinho e uma sandes
esperando que o camarada das finanças do comité central
não considere estes meus gastos um desvio pequeno-burguês

o vinho deu-me asas e desviou-me da rota
pus de lado a resolução do comité central e escrevi-te um poema
para que o desvio não fosse avassalador imaginei a revolução no teu corpo
e uma bandeira rubra nos teus lábios de cereja
acabei o breve poema e recomecei a escrever a resolução do comité central
os camaradas acharam que a resolução sofria de um desvio idealista
e foi esmagadormente derrotada na votação final
(creio que foi aí que perdi a corrida para o lugar de secretário geral)
passei à máquina o poema que te tinha escrito
e dei-to na primeira vez que te encontrei
foste mais efusiva que os camaradas do comité central
e nessa noite cantei sobre o teu corpo as heróicas canções dos partizans
o sabor amargo da derrota no comité central
colocou a nu o meu pendor idealista
nefasto à visão materialista do mundo
próprio de um secretário geral que se preze
talvez para apagar a mágoa de ser derrotado na corrida a secretário-geral
passei a escrever poemas líricos
levemente pequeno-burgueses
poemas que transcrevo no teclado de uma máquina antiga
e vou distribuindo pelas ruas às raparigas de olhar suave
agora que não sei onde andas
e os membros do comité central já esqueceram o meu nome

Barcarena, 20/11/2010

Manuel Monteiro

2 comentários:

Manuel Baptista disse...

saudações e um sorriso deste teu leitor/irmão!
ManuelBaptista

lua vagabunda disse...

mas os q nao eram membros do tal comite.......
tenho muito boa memoria...
boa demais.
parabens pela escrita